A VIDA CANTADA EM DRAMAS E POR DRAMISTAS DE GURIÚ
A partir de 2002, iniciando o Doutorado, quis pesquisar sobre as protagonistas de um movimento que durou mais de 60 anos e que interligaria antigas e atuais brincantes de dramas cantados em Guriú, localizado no litoral Oeste do Ceará.
A Pesquisa de Doutorado realizada no decorrer de 2004, amparou-se na escolha metodológica de percorrer a trajetória de existência dos dramas cantados de Guriú, através da memória de suas dramistas (Histórias orais) ou de observação direta de espetáculos ou ensaios.
As dramistas levavam alegria e também faziam chorar. Em Guriú ainda hoje há quem conheça alguma comédia de drama que sirva para chorar ou comemorar os amores. Mariinha, nascida em 1959, explica a especificidade dos dramas, o que não se pode comparar com as histórias de encanto:
Esse negócio de encanto é uma coisa sem fundamento, botija eu sei que existe, porque eu já vi. É diferente porque os dramas eu vou dizer logo: fazia assim um rapaz que era apaixonado por uma moça, então de primeiro os rapazes não namoravam com as moças, aí ele chegava ao pai de família e pedia a casamento, aí o pai da moça tinha aquela surpresa, não queria dá a filha a casamento, mas só que eles já se amavam, escondidos mesmos eles já se amavam, se o pai da moça não desse, as músicas de drama eram assim, aí ele dizia que carregava ela. Fazia também essa dramatização de um rapaz e uma moça apaixonado, ela oferecendo venda das flores e ele dizendo que só comprava se fosse ela, a florista, a gente cantava essa, cantava a do velho que não queria que a filha casasse, cantava o coió que era um rapaz muito enxerido para as moças e que mentia para as moças, tudo a gente fazia, a gente cantava também da campina, de um rapaz rico que chegou e falou para uma moça numa fazenda, aí ele fala para a moça que quer levar ela para a cidade, e a moça não quer, também tem a da cigana, essa da cigana quem ensinou a gente foi a finada Benedita da Preta, ela se fosse viva tinha os seus setenta anos, ela ensinava a gente, ela cantava essa cigana e era muito bonita a cigana, ela ensinava a do matuto e eu ainda bem lembro da Benedita fazendo essa dramatização, ele era um matuto que nunca tinha ido na Vila, e ele chamava Rila, isso aqui a gente chama de Vila, mas de primeiro uma vila era uma cidade, tinha as das borboletas, das frutas, tinha uma outra comédia que eu me lembro que era dos planetas, só que eu lembro de algum pé e outros não e aí não adianta cantar.
As mocinhas dramistas comemoravam o frescor juvenil, sempre comparado a tempos de primavera, fazendo-se passar por flores:
Sabe a árvore sagrada
Que complete a criatura
Quanto mais pequeno nada
Quantas vidas sepulturas
E eu a Rosa Amélia
Soberana e graciosa
Que saúdo com vassalos
Numa árvore gentil
Que saúdo com vassalos
Numa árvore gentil
Sabe a árvore sagrada
Que complete a criatura
Quanto mais pequeno nada
Quantas vidas sepulturas
E eu amor perfeito
Com tão perfeito amor
Que venho aqui saudar
O nosso criador
E eu a Rosa Amélia
Soberana e graciosa
Que saúdo com vassalos
Numa árvore gentil
Que saúdo com vassalos
Numa árvore gentil
Sabe a árvore sagrada
Que complete a criatura
Quanto mais pequeno nada
Quantas vidas sepulturas
E eu um dos vassalos
Que tão realeza
Que venho aqui saudar
A nossa natureza
E eu a Rosa Amélia
Soberana e graciosa
Que saúdo com vassalos
Numa árvore gentil
Enilza, nascida em 1951, lembra que “as rosas ficam dormindo, botam uma do lado da outra e ficam dormindo.Chega a borboleta! A borboleta chega e vem dizendo, e diz”:
A linda borboleta vem chegando
Ao sonho de uma canção que ali sorria
Sonhando com a sua linda borboleta
Que vem para o festival do dia
Sonhando com a sua linda borboleta
Que vem para o festival do dia
Elas despertam as rosas:
Ô como é belo o despertar
De um sonho brando
Que alegre o toque
De umas asas de Carmin
Para alegrar no sembrante, no socorro
Que a natureza só se finda é de jasmin
Aí a borboleta fala para ela:
A rosa, o amor perfeito e os vassalos
A linda borboleta vai saindo
Levando as suas flores sem espinhos
Também as lindas flores vão saindo
Sem medo de errar os belos caminhos
Também as lindas flores vão saindo
Sem medo de errar os belos caminhos
Os tipos femininos contidos nas comédias de drama são os mais diversos. É uma sucessão de flores de cores e cheiros diferentes. Há tapuias vivendo muito feliz na relva:
Sou índia
Nasci nos campos
No meio da sálvia
Conheço todos os vizinhos
A todos eu tenho amor
Sou índia
Sou Índia
Tra-la-la-la
Que vida feliz
Que vida agitada
Viver nas florestas
Vivendo de amor
Que vida feliz
Que vida agitada
Viver nas florestas
Vivendo de amor
Sou índia
Sou Índia
Tra-la-la-la
Há as viuvinhas que não querem mais casar, há as matutas, floristas, mães alcoviteiras, mulheres dos bêbados, Madalena que aperreia para ganhar um vestido, baianas sensacionais (Ô baiana, eu gosto bem de ti, ô baiana criada em Pequim, ô baiana criada em Pequim, diferente das baianas que há no Brasil):
Eu sou baiana lá do alto mar
Tem um jeitinho de me requebrar
Minha saia tem linda rosa
Os meus cabelos já é frisado
De manhãzinha
Quando o dia amanhece
Vou colher
As flores do jardim
Convido a todas
As minhas amigas
Para ir comigo
Os dramas apresentam personagens femininos sofredores tanto quanto a pobre Maria, que labuta até a morte. Francisca, conhecida como Pinta, mulher do dono do Clube do Guriú, cantou como se apresentava aqui uma comédia que fala da destruidora paixão e do seu aspecto estruturante na vida:
Lá na oficina
Aonde trabalhava
A jovem Maria
Ela trabalhava
De cabeça baixa
E assim passava o dia
Já é bem cedinho
Chegam as amiguinhas
Para lhe despertar
Que já são seis horas
Se acorda, Maria!
Vamos trabalhar!
Maria espertava
E se põe a imaginar
Abençoa papai
Abençoa mamãe
Me levanto já!
Já são às seis horas
Chega um mensageiro
Para lhe avisar
Que a pobre Maria
Lá na oficina
Acabou de estirar
Sua mãe chorava
Com uma dor no coração
Que foi este jovem
Que matou Maria
De tanta paixão
Em outras produções, os homens é que sofrem com a frieza de um coração feminino. A menina Rosa massacra um pobre coração enamorado:
Boa noite, Menina Rosa
Dê licença, eu lhe abraçar
Eu te digo daqui a pouco
Você deve respeitar
Uma palavra, menina!
Algo em mim acende
Preste atenção ao que eu digo
Vá dizendo o que pretende!
Eu pretendo a minha rosa
Para comigo casar
Para os festejos de festa
Que vão dá o que falar
Para os festejos de festa
Que vão dá o que falar
Há uma recorrência nos dramas de Guriú a este tema de amores correspondidos ou não, de encontros e desencontros, de pactos e de rompimentos, de promessas de amor eterno e de desilusões. Assim recitou e cantou Mundica.
Hoje eu saí para um passeio
Para convidar meus colegas
Para o meu próximo casamento
Mas este encontro foi muito triste
Porque eu encontrei com
Minha noiva
E nessa hora ela me rejeitou
Porque que você
Me rejeitou hoje
Porque nós estamos
Noivos de aliança
Porque que você me rejeitou?
Quero mais não
Quero mais não
Amor firme ficou para atrás
Hoje eu vou à procura de
Outros rapazes
Se você quer se casar
Mude o seu ponto de vista
Você está muito errada
É o que venho aqui para lhe dizer
Afeto grande
Criei amor
Presente em seu coração
Porque assim
Você está muito errada
Quero mais não
Quero mais não
Amor firme ficou para atrás
Hoje eu vou à procura de
Outros rapazes
Sobre as lindas meninas pobres e as feias meninas ricas há também produção na história dos dramas de Guriú, o que me faz lembrar outra comédia de drama falada que ouvi pela primeira vez na cozinha de Otília (nascida em 1925) nos idos 1998 (1.º encontro com uma dramista). O enredo tem relação com duas moças, uma pobre, outra rica, a rica era feia, a pobre era bonita:
- Não sei por que hoje, estou horrivelmente feia. E com muito pó e ruge ficarei bonita e arranjarei um noivo!
- Oh, Bernardina?
- A senhora chamou-me?
- Cadê o meu batom que eu botei aqui? Tu roubaste, atrevida?
Moça pobre diz:
- A senhora pensa que eu sou ladrona? Mas quanto mais a senhora se pinta, mais parecida com uma doida fica.
A Rica diz:
-Conversasse com o Senhor Martins hoje?
A pobre responde:
-Conversei mais de duas horas!
- Que é que ele disse de mim?
- Ele disse que a senhora era muito rica, sim feia, ele disse é que a senhora era muito feia, sim rica, para casar era só querer!
- Oh, beleza! Vou já contar a mamãe.
Aí a pobre fica no palco:
- Coitadinha dela! Ela pensa que o Senhor Martins é louco por ela. Seu Martins é louco por mim. Essas moças confiadas que são ricas pensam que é só querer casar, prefiro uma pobre como eu, nem lhe invejo, cada qual cuide em si!
Aí a velha chega:
- Cuidará de todos os meus cuidados! Eu estava na cozinha, mas estava ouvindo tudo!
A pobre diz:
- O que eu estava dizendo era que o rapaz rico, que deixa de casar com uma moça pobre e bonita, para casar com uma rica e feia, é um desgraçado!
A velha dizendo:
- Mas em primeiro lugar a riqueza!
A pobre diz:
- A beleza!
- A riqueza!
- A beleza! Você diz isso porque tem uma filha rica, feia como o cão!
- E tu que além de ser feia é mal criada!
- Ah, eu sou bonita como os anjos!
Aí a velha patroa diz:
- Vai chamar o seu Martins!
Seu Martins chega:
- Boa noite, Dona Filomena
A mãe da moça responde:
-Boa noite, Senhor Martins! Senhor Martins mandei lhe chamar para um causo com o Senhor resolver!
Seu Martins prontamente responde:
- Se for de meu gosto, de meu agrado, logo resolverei!
A Velha diz:
-Apresento a mão de minha filha, Dorotéia!
Seu Martins rebate:
- Dorotéia? Não a conheço! Conheço é Bernardina!
Atônita a Velha balbucia:
-Mais Bernardina não é minha filha!
O Rapaz esclarece:
-Mas com ela pretendo é casar!
A Velha indignada retruca:
-Para que um rapaz casar com uma moça pobre que nem um baú possui?
O rapaz tem a resposta na ponta da língua:
-Para que pobre com baú? Até um saco de estopa me serve!
E encerra-se essa parte de drama cantando:
- Não há homem mais feliz do que o Martins Peixoto, casou-se com a moça pobre, a rica saiu de xoto! Casou-se com a moça pobre, a rica saiu de xoto. Uma rica sendo feia, que bom gosto pode ter, uma pobre sendo bonita, bota ela para correr! Uma pobre sendo bonita bota ela para correr.
Aí a velha canta:
- Eu tenho uma filha rica, com mil contos em dotes, apareça um candidato que eu não perco a boa sorte! Apareça um candidato que eu não perco a boa sorte!
Antes de fechar a empanada é cantado:
- Não há homem mais feliz do que o Martins Peixoto, casou-se com a moça pobre, a rica saiu de xoto! Casou-se com a moça pobre, a rica saiu de xoto.
O mundo irreal criado pelos poetas permite que se escutem e aturem todas as coisas mais insuportáveis da vida: morte, abandono, guerras, traições, injustiças etc. Estes sentimentos se transformam em ações que, uma vez representadas, não ameaçam a realidade. Este drama cantado de Guriú retrata os destinos de uma pobre moça, que uma forte afeição liberta do jugo de malvadas e ricas senhoras. O gosto pelas novelas mexicanas que presenciei entre a população de Guriú situa este sentimento de luta entre o bem e o mal como algo que não cessa de interessar, há pelo menos quatro gerações, às crianças, adultos e idosos. E inevitável a presença de um espelho meu que fala que a pobre borralheira é a mais linda do lugar! E foi isso que Seu Martins foi capaz de enxergar.
Com um forte compromisso cômico, especializadas em fazer o público rir as dramistas de Guriú tinham neste vasto repertório de mais de sessenta anos (há registros de apresentações no começo dos anos 1940) muitas comédias de drama que provocavam as gargalhadas do seu fiel público. Lucinauda, da geração de dramistas da virada do século XXI, 60 anos após o presumível aparecimento de dramistas em Guriú, informa que era importante fazer humor:
Quando a gente ia ensaiar, as meninas diziam assim: “Ah eu não quero isso aí não!” E a gente respondia: “Mulher, mas tem que ensaiar!”. Era o jeito a gente ensaiar, porque não eram sós as comédias melhor e as mais engraçadas ficar de fora, no drama é mais importante aquelas comédias mais engraçadas para o pessoal gostar. Tudo serve, mas aquelas comédias de bêbado, de velhinhos são mais importantes e o pessoal gosta mais. Gostam é quando o bêbado está saindo todo tombando e o pessoal ri.
Arrancadores de grandes gargalhadas são estes temas que trazem velhos correndo atrás das mocinhas. Eles encostam-se ao grotesco e permanecem ávidos por seduzir. Há um famoso senhor corcunda que quer atrair as moças:
Cacundão, cacundão
Quando veste o palito
Sai dizendo as moças
Que é do forró
Cacundão, cacundão
Quando veste o palito
Sai dizendo as moças
Que é do forró
Sou Cacundão
Mas tenho dinheiro
A falta de moça
Eu não morro
Solteiro
Sendo um lugarzinho reservado às meninas, cabia-lhes a escolha de algumas entre elas que tivessem habilidade para fazer parte de homens. Elas arrumavam-se com trajes masculinos e faziam as representações. Mesmo que tenham nascido e vivido lá, era comum o público rir dos matutos. Propositalmente, essas comédias eram cantadas na língua dos matutos e, mesmo que essa fosse à condição do público, era de provocar grandes gargalhadas. As comédias de matuto eram adoradas:
Um dia desses eu fui a Rila
Só pru mode, eu me assustar
Mas dizia vai cumpadre
Lá tem muito o que se olhar
Pois não me avisaram
Como era eu de fazer
Por causo do esquecimento
Eu tive muito que sofrer
Eu saí todo lambeiro
Rá-rá –rá-rá-rá-ra-rá
Pensando em fazer figura
Rá-rá –rá-rá-rá-ra-rá
Pois e foi o contrário
Rá-rá –rá-rá-rá-ra-rá
Quase perco a passarinha
Rá-rá –rá-rá-rá-ra-rá
Quando eu entrei no bonde
Fiquei logo agoniado
Os pés estavam me doendo
Pelos calos amagoado
O povo me olhava
E eu fiquei acabrunhado
Eu perguntei sem demora
Se eu estava arriado
Uma garota respondeu
Muito bem expilicado
A camisa está às avessas
E o colerim amassado
O palito está errado
A gravata está para trás
As calças está toda suja
E o sapato está trucado
Recitado:
Era o que mais me admirei
De que num tava trucado mesmo
Volta a cantar:
Eu fiquei com tanta raiva
No ponto de empanzinar
Resolvi no coração
A viagem desmanchar
O trem ia passando
Por detrás de uma estação
Eu pulei pela uma janela
Quase me lasco no chão
E o povo me olhando
E deram uma vaia e gargalhada
Levantei caxingando
Resolvi na mesma hora
Outra volta não tornar
Nunca mais eu caio noutra
Não vou mais a capital.
Não há registros de censura na temática dos dramas de Guriú. Os dramas cantados eram bem aceitos, mesmo quando apresentavam velhos salientes a ficar no meio das moças, fazendo de conta que são rapazes ou marinheiros querendo seduzir índias ou rapaz capaz de comprar até as rosas da face de uma bela florista.
Sou florista desta cidade
Trago mil rosas sempre a vender
A mais bonita de uma adorante
Perfumes raros de entontecer.
Eu passo aqui toda a minha vida
À procura algum comprador
Que passeando pela avenida
Talvez me compre alguma flor.
Aí chega o rapaz (recitado):
- Muito boa noite, minha bela florista!
-Muito boa noite, meu bom Senhor!
- Será capaz de me vender uma rosa?
- Ora, pois escolha!
Aí ele cheira as rosas (recitado):
- Ora, pois não, escolha!
- Todas são lindas!
- Pois leve todas!
- Levarei todas contando contigo, que é a mais bela!
- Ah, eu não sou de venda!
Aí ele cheira, beija a flor:
Ô que perfume tem essas flores,
As outras flores não são assim!
És a perfeita rosa do amor
Que me despreza e foge de mim.
Quanto queria se eu te comprasse
As rosas todas que eu tenho aqui,
Também as rosas de tuas faces
Assim tão bela, eu nunca vi!
Ele queria comprar as rosas e a face dela e ela diz:
- Não há dinheiro que compre as rosas
De minhas faces, meu bom senhor!
Hei de guardá-las bem perfumadas,
Para ofertá-las ao meu amor!
Não há dinheiro que compre as rosas,
De minhas faces, meu bom senhor!
Hei de guardá-las bem perfumadas,
Para ofertá-las ao meu amor!
Ele diz:
- Ofertá-la a mim? Não sou rosa, meu Anjo!
Cantando:
Ô que ventura vamos gozar!
Te dou-te um beijo, sinto calor.
Que vejo as faces desabrochadas
E a Rosa linda é de nosso amor.
Ó, que ventura vamos gozar!
(neste instante se ouvia o estalar de um beijo):
Te dou um beijo, sinto calor.
Que vejo as faces desabrochadas
E a Rosa linda é de nosso amor.
Um aspecto curioso dos dramas que circularam por Guriú, destes produtos procedentes de tantos outros gestos circulantes que vieram de Fortaleza, Camocim, Barrinha, dos filmes hollowoodianos inspiradores, dos sucessos de rádio e vitrola, era o fato de a substância dos dramas não se aliar com fins disciplinadores de costumes morais ditos como apropriados. Dizem que Padre Inácio fazia era gargalhar das besteiras de meninas. Se existe nos dramas um apelo de aprendizagem, este reside na Educação Estética ampla para ser dramista ou para montar um espetáculo. Os saberes que circulam nos cantados e recitados dos dramas são muito mais apropriados para o saber refletir, agir, sofrer e rir com as situações amorosas, dos relacionamentos, dos paradoxais interesses românticos, destas situações que envolvem o ser amante e o ser amado.
As pequenas tragédias cotidianas, que intimamente parecem ventos devastadores em alto mar, são cantadas nos dramas das mulheres de Guriú. A música está presente na tragédia, “que só se deixa interpretar como uma manifestação e figuração de estados dionisíacos, como simbolização visível da música, como o mundo sonhado por uma embriaguez dionisíaca”. (NIETZSCHE, 1983, p. 14).
A música se apodera de quem ouve e em nome da “alegria” de rir. E as cenas do cotidiano viram ritmos, produzem risos e satirizam com as impossibilidades do existir. Enfim que seja feliz quem consiga tal façanha. Este drama que justamente clama por este lugar de casal feliz apresenta alguns dos efeitos dos desencontros amorosos:
A Moça canta:
Uma casinha que ele tem
Está além, está além
Triste também
E o homem que nela tem
Está além, está além
Mas ainda vem
Ele foi dá um passeio naqueles meios
Eu boto outro no lugar
Mas se ele não voltar
Com este modo de tratar
Dou um fora e vou embora
E boto outro no lugar
Eu sou muito jeitosa e carinhosa
E me torno amorosa
Mas se ele voltar
Se Deus quiser
Para a minha companhia ainda
Eu já estou bem conformada
Mas se ele não voltar
Com esse modo de tratar
Dou um fora e vou embora
E boto outro no lugar
O Rapaz (que sempre era uma menina vestida de trajes masculinos):
Esta mulher é porque é muito ciumenta
Mulher assim, eu não sei porque se casa
Me acaeda
Me atanaza
Me acaeda
Me flagela
E me atormenta
Põe-se a chorar
E eu não sei o que ela quer
Se eu estou em casa
Ela diz que sou preguiçoso
Se eu vou pra o roçado
Ela diz que eu sou zeloso
De qualquer jeito de viver
Ela ignora
Eu chego meio distante e constrangido,
Ela sorrindo, como diz “é um estranho”
Olha para mim com uma fera tamanha
Eu fico meia hora esbaforido
E me arrependo da hora que nasci
Na estrada quem passa
Ela pastora
Se é mulher, ela se arrupeia
E fica assanhada
E me chama e diz:
“Lá vai a tua namorada”
Aqui não pode mais passar uma senhora
Se zanga e passa uma semana sem comer
Fala de mim
Que eu não posso suportar!
Quando eu me zango
Ela começa a chorar
E eu não sei nem mesmo
O que fazer
Se acarinho
A danada quer morder
Ela é danada para falar
Da vida alheia
Namoradeira, muita menina bacana
E nas condutas faz igual a Mariana
A boca grande do tamanho de uma baleia
Pé na lenheira
Muito mais do que cambite
Muito comprida e o nariz muito achatado
Cabeça seca e o cabelo assaranhado
Só tem um dente
Ainda me chama de esquisito
E é só ela que parece
Com o maldito
Representante desta maldição em forma de feiúra extrema, boa de namoro, faladeira, tão boa quanto Mariana nas condutas, enfim nasceu para fazer a desgraça deste homem e provocar gargalhada do público e com ele vive um combate:
[...] mas combate-entre, ao contrário, trata de apossar-se de uma força para fazê-la sua. O combate-entre é o processo pelo qual uma força se enriquece ao se apossar de outras forças somando-se a elas num novo conjunto, num devir. Pode-se dizer que as cartas de amor são um combate contra a noiva, cujas inquietantes forças carnivoras trata de repelir, mas é igualmente um combate entre as forças do noivo e forças animais que ele associa a si para melhor fugir daquela de quem teme a ser presa, forças vampíricas que ele vai utilizar a fim de sugar o sangue da mulher antes que ela o devore, todas essas associações de forças constituindo devires, um devir-animal, um devir-vampiro, talvez até um devir-mulher que só se pode obter por meio do combate. (DELEUZE, 2004, p. 150)
Esta é a arte de representar (das mocinhas dramistas) as situações cotidianas, dos encontros e desencontros da vida, das seduções, da beleza das flores, dos encontros de destinos, de vingança da morte do pai e de pobres moças operárias trabalhando até a hora de morrer; e também se apoiando em um clima de alegria, de deboche com as próprias misérias, do rir das identidades, rirem dos clichês, de cenas acontecidas com o tipo de situações domésticas recorrentes na região; enfim, rir de si mesmo e do outro mais próximo.
Ser dramista é receber e dar a dádiva de rir do envelhecer, do ser matuto, das brigas de casal, do ser chegado a uma bebedeira, do ser a mulher que ama o bêbado. Uma menina vestida de rapaz canta as famosas comédias de drama que contam histórias de bêbados:
Eu sou louco
Por uma bebedeira
Apaixonado pela malandragem
Vivo no trafego
Bebendo cachaça
Com uma garrafa
Debaixo do braço
Ainda ontem
Eu ouvi dizer
Que ia ter uma
Brincadeira aqui
Com o céu bem estrelado
E eu ficando incapaz de vim
Outra menina representando a mulher que ama:
Não sabes
Oh, meu amor
Que eu sofro
Por ti, oh flor!
Pouco a pouco
Nosso amor
Vai se acabando
Ele é bonitinho
Mas tem a triste sina
Toma cocaína, toma cocaína[2]
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 2004.
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia no espírito da música. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. [s.l.]: Abril Cultural, 1983.
[1] Professora da UFMA/ Imperatriz, Doutora em Educação pela UFC (Orientador Daniel Lins), foi bolsista da FUNCAP.
[2] Esse drama já é cantado por D. Otilia, que representa o grupo que apresentava drama nos anos 1940 em Guriú. E já vemos as mocinhas admitirem que exista já a cocaína. Umas memorialistas pronunciam cocaína e outras enunciam cacaína. E D. Raimunda que me via passar sempre em frente a sua casa, chamou-me para avisar que havia sido dramista, revelou o que pensavam essas dramistas sobre a cocaína: Eu perguntei: “Quando vocês cantavam essa música, vocês sabiam o que era cocaína?”. E Raimunda respondeu: “A gente achava que era tipo uma bebida”. E era cacaína ou cocaína? Mistério continuou.
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